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terça-feira, 17 de novembro de 2015

Bento XVI estava certo: sobre o extremismo islâmico, há 9 anos


  Enquanto a violência do autoproclamado Estado Islâmico volta-se contra os cristãos, os yazidis e outras minorias, muitas vozes se unem em condenação. Entre estas, destacam-se as do mundo muçulmano, dos líderes religiosos da Grã Bretanha, ou do King Abdullah Bin Abdulaziz International Centre for Interreligious and Intercultural Dialogue (KAICIID), com sede em Viena, passando pelos intelectuais e jornalistas de várias latitudes, até a comovente manifestação por parte das pessoas simples. A condenação é unânime. Os fanáticos manipulam o islã, transgridem o Alcorão e traem a religião que dizem professar. Isso faz lembrar o discurso do professor Ratzinger em Ratisbona.
  No dia 12 de setembro de 2006, Joseph Ratzinger, atualmente Papa Emérito Bento XVI, visitou a Universidade de Ratisbona, onde havia sido professor. Ali pronunciou um memorável discurso que hoje ressoa com força. Falou da vocação natural das religiões à justiça e à paz, cuja realização depende da articulação correta entre a fé e a razão, um dos grandes tópicos da sua Teologia e do seu Magistério. Explicou que, quando falta o diálogo, apresentam-se as patologias da razão e da religião que fazem escorregar, ao extremo, rumo ao fanatismo. Diante do despertar da irracionalidade misturada ao fundamentalismo, lançou um desafio aos muçulmanos para condenar a violência como meio de impor a fé, sem aliviar também para os cristãos.

  O Papa Emérito Bento XVI tinha colocado o dedo na ferida. Três lições devem ser lembradas. Por um lado, o mundo midiático e intelectual do Ocidente, que se diz expressão da tolerância e da liberdade, lançou-se com violência irracional contra Ratzinger, acusando-o de ser fanático e provocador, quando na verdade tinha convidado ao diálogo na razão. Por outro lado, muçulmanos também lançaram condenações. No fim, todos têm de dar razão a Ratzinger. Tanto um quanto o outro mostraram que sofrem das patologias descritas no discurso de Ratisbona. A reação mais interessante e decisiva foi a do islã. Um grupo de líderes e intelectuais muçulmanos assinou uma carta na qual eles acolhiam o desafio do diálogo. O epicentro aconteceu no Reino da Jordânia, mas se estendeu rapidamente a várias latitudes. Nessa carta, apesar de algum desacordo com Ratzinger, foram condenados aqueles que pretendiam impor com a violência “sonhos utópicos nos quais o fim justifica os meios”.

  É certo dizer que a aula e a carta não deram início ao diálogo entre os cristãos e os muçulmanos, mas sem dúvida foram um fator importante para promovê-lo a níveis nunca vistos antes. Hoje certamente este diálogo está dando frutos não apenas entre certas elites, mas também entre as pessoas comuns, que antes de aparecer estes fanáticos tinham feito a convivência interreligiosa como a maneira natural de ser e hoje protestam porque querem continuar a viver da mesma maneira. Esta é a voz mais forte entre aquelas que podem ser escutadas. O encontro entre o povo simples e a intelectualidade enche de esperança. Quando este relacionamento se alimenta de paciência e constância, gera movimentos culturais potentes.

  A memorável aula em Ratisbona teve outras consequências que hoje podemos observar. As palavras de Ratzinger deram maior impulso a uma ideia que nasceu da realidade dos percursos religiosos do século XIX e da primeira metade do século XX, vistos à luz do Evangelho, expressos claramente no Concílio Vaticano II, alimentados pelo Magistério pontifício sucessivo e articulado ao melhor da diplomacia da Santa Sé. Deseja-se fazer da liberdade religiosa uma das pedras angulares do Direito e das relações internacionais. Aqui se encontra o constante esforço da Igreja por favorecer a voz dos líderes e dos movimentos religiosos que buscam a paz mediante a justiça, de modo que se gerem âmbitos de convivência harmoniosa em cada sociedade, iniciativa chamada genericamente de: “o espírito de Assis”. A liberdade religiosa deve se tornar cultura com o apoio das políticas públicas dos vários Estados. Um dos mais importantes promotores desta proposta, para buscar um exemplo significativo, foi o doutor Thomas Farr, que dirige o Religious Freedom Project no Berkeley Center for Religion, Peace and World Affair da ‘Universidade de Georgetown. Infelizmente nem os Estados Unidos nem a União Europeia quiseram escutar a aula de Ratisbona, ou a proposta da Igreja, muito menos as excelentes razões articuladas por acadêmicos e diplomatas de vários lugares. Quando as religiões cruzam seus caminhos, o que acontece continuamente, perdem o sentido da realidade, cegas pela própria arrogância. As tentativas de voltar à razão são interpretadas como uma violação impetrata pelo secularismo radical. É um pecado.

  O Ocidente laico – políticos, intelectuais e meios de comunicação – desdenhou a proposta e, sem querer, tornou-se cúmplice, por omissão, do fundamentalismo que manipulou o islamismo até criar uma ideologia do extermínio. A sua falta de compreensão é tal que tentou manter o silêncio diante do sacrifício dos cristãos e de outras minorias no Oriente Médio, mas a dura realidade é imposta. Somente ações multilaterais baseadas em uma estratégia que faz da liberdade religiosa e do diálogo interreligioso as próprias pedras angulares poderá trazer paz, justiça e estabilidade no Oriente Médio. Ratzinger tinha razão para além da aula de Ratisbona. Nas primeiras linhas do seu livro “Introdução ao Cristianismo”, traz as palavras de Kierkegaard sobre o palhaço na aldeia em chamas. Um circo se encontrava na periferia de um vilarejo, e de repente pegou fogo. O patrão ordenou ao palhaço que colocasse a roupa de cena para avisar do perigo eminente. Os habitantes, além de escutá-lo, riam dele tornando em vão o seu esforço. Quando conseguiram reagir era tarde demais. O vilarejo foi consumido pelas chamas. Para o Oriente Médio é mais do que uma simples parábola.

  De qualquer forma, Ratzinger estava longe de exortar ao desânimo. A sua Teologia e o Magistério Pontifício foram um ponto de esperança, de alta inteligência. O seu apelo se encontra no realismo e na esperança. A situação atual de quem evangeliza na cultura da indiferença, na verdade, tem pouca coisa de novo. Como Igreja, não compartilhamos o nosso destino com o palhaço, mas com os santos e os profetas que pisaram na terra. Assim diz Jeremias: “A palavra do Senhor tornou-se para mim motivo de vergonha e gozação o dia todo. Eu me dizia: ‘Não pensarei mais nele, não falarei mais no seu nome!’ Era como se houvesse no meu coração um fogo ardente, fechado em meus ossos. Estou cansado de suportar, não aguento mais!”, (Jr 20, 8-9). Este é um “fogo” que Jesus lançou no mundo e que queria tanto ver arder. A aula de Ratisbona se transformou em uma evocação. O Reino de Deus parece uma semente que, uma vez colocada na terra, cresce dia e noite mesmo se o trabalhador não percebe, até dar frutos abundantes. 


Fonte: Portal Aleteia, por Jorge Traslosheros

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